sexta-feira, junho 29

* Entrevista com Laerte, o cartunista



Laerte de batom, unhas pintadas, brincos e cabelos chanel, elementos que agregou recentemente às roupas masculinas. Desejo de explorar o universo feminino. 

O cartunista Laerte, com 40 anos de carreira e 59 de idade, lança 'Muchacha', coletânea de quadrinhos sobre os bastidores de uma série televisiva. No livro, um dos personagens, Djalma, se veste de mulher - comportamento que o próprio ilustrador vem adotando desde 2009 como reflexo de uma crise pessoal e profissional.

"Tenho vergonha de quase tudo que desenhei"


Passava das 14h30 de uma quarta-feira e Laerte Coutinho ainda não chegara à entrevista. Eu o aguardava numa padaria da Vila Madalena, bairro notívago de São Paulo. O cartunista de 59 anos, que está completando quatro décadas de uma carreira elogiadíssima, deveria aparecer 30 minutos antes. Como não dava as caras, resolvi lhe telefonar. "Putz, rapaz! Me esqueci de você!", constatou, aflito. Saiu correndo do Butantã, onde mora num sobrado com dois gatos, e adentrou a padaria às 15h20. Exibia vistosos brincos de pérolas e um corte de cabelo chanel.


Apenas no fim da conversa, que durou quase três horas, esclareceu o motivo do visual peculiar: desde 2009, como resultado de uma profunda crise, mantém o hábito de se vestir de mulher, total ou parcialmente. A prática também pontua o livro Muchacha, que o desenhista paulistano acaba de lançar. A coletânea reúne quadrinhos publicados no jornal Folha de S.Paulo e retrata os bastidores de uma série televisiva dos anos 50. Um dos personagens, o ator gay Djalma, protagoniza espetáculos musicais sob a pele de uma transexual cubana.

BRAVO!: Você costuma esquecer compromissos?

Laerte Coutinho: Não, não costumo. É verdade que, às vezes, me desligo um pouco da Terra e vou para o mundo da Lua. Mas, em geral, me julgo um camarada bem responsável.

Então por que você se esqueceu do nosso encontro? Tem ideia?

LC: Sinceramente? Freud explica. Freud sempre explica. Na realidade, não queria dar entrevista. Estou me obrigando… Atravesso um período nebuloso, sabe? Uma crise gigantesca, tanto pessoal como profissionalmente. Não ando satisfeito com minhas criações e não imagino um modo de torná-las satisfatórias no curto ou no médio prazo. Talvez nem mesmo no longo. Uma sinuca de bico… Falar sobre minhas ilustrações, meus cartuns e minhas tiras neste momento me incomoda muito. É reivindicar importância para algo que já não avalio como tão relevante. Hoje não acredito que possa despertar o interesse de alguém. Sinto vergonha de quase tudo o que produzi em 40 anos de carreira. Gostaria de consertar a maioria das coisas.

Vergonha? A palavra me soa forte demais, entre outras razões, porque você ganhou inúmeros prêmios e porque diversos cartunistas, incluindo os jovens, frequentemente o classificam de genial.

LC: O problema é que não me convenço. (risos) Genial? Considerava-me gênio quando adolescente. "Uma hora o mundo vai me descobrir", pensava, enquanto rabiscava carros, barcos, guerreiros. Tremenda bobagem… Claro que enxergo qualidades no que fiz e no que faço. Longe de mim bancar o coitadinho ou apelar para a falsa modéstia. Só que tais qualidades não chegam nem perto das que me atribuem. Eu não me contrataria. (risos) Na década de 1980, por exemplo, participei do Festival Internacional de Quadrinhos em Angoulême (sudoeste da França). Fui representar o Brasil com o Ziraldo e mais alguns colegas. Assim que desembarquei na cidade, bateu um desconforto horrível. Tive ímpetos de cavar um buraco e sumir. Os franceses, que publicam HQs sofisticadérrimas, maravilhosas, simplesmente nos desprezaram - ainda que de maneira diplomática. Eles examinavam as nossas produções, arrebitavam o nariz e comentavam: "Curioso, curioso…" Aquilo me pareceu uma baita injustiça contra o Ziraldo e o resto da turma, mas não em relação às charges que levei para lá. Confesso que adoraria adorar a minha profissão. Adoraria ser como o Angeli, que desenha com um amor imenso. Ou como o Robert Crumb, que desenha compulsivamente. Ou como o Paulo Caruso, que desenha com uma facilidade assombrosa.

Você não vê mais graça em desenhar?

LC: Praticamente não vejo. Desenhar se tornou penoso, difícil. Mal começo um trabalho, percebo que estou me dedicando àquela tarefa apenas porque necessito cumprir prazos ou pelo simples fato de que já a incorporei no meu cotidiano. Fugir da burocracia virou o xis da questão. Descobrir rumos novos, prazeres diferentes… Há tardes em que travo e fico horas sem arriscar um mísero esboço, inteiramente refém da autocrítica. Não me agradam os motes que escolho para as tirinhas, o desenvolvimento das tramas, a redação dos textos, o jeito como lido com as cores, a plasticidade do meu traço. Por outro lado, também não me agrada a perspectiva de largar tudo e me refugiar numa ilha deserta, folgadão. Não pretendo me aposentar. O que desejo é me reinventar.

Quando a crise eclodiu?

LC: As primeiras insatisfações surgiram em 2001 ou 2002, no vácuo de uma tempestade maior que causara o fim do meu terceiro e último casamento. Pouco depois, em 2004, o incômodo cresceu e resolvi abdicar de vários elementos que marcavam minha trajetória. Abandonei personagens famosos, como o Overman, os Gatos e os Piratas do Tietê, certo tipo de humor, menos sutil, e a preocupação com a linearidade das histórias. Iniciei, ali, uma fase mais "filosófica", que muitos intitulam de nonsense e que ainda me caracteriza. Uma parcela dos jornais que divulgavam os meus quadrinhos estranhou a reviravolta e acabou me dispensando - caso do gaúcho Zero Hora e do capixaba A Tribuna. Reclamavam de um hermetismo excessivo, de uma obscuridade que atrapalharia a fruição do público. Evidente que não concordo. Rejeito, inclusive, o adjetivo nonsense para definir o meu trabalho. Nonsense pressupõe o caos, a ausência total de significado. Ocorre que minhas tiras buscam, sim, um sentido - mesmo que seja o de aplicar um golpe na lógica, o de implodir o senso comum. Discussões semânticas à parte, noto que a trilha inaugurada em 2004 vai se fechando. Preciso, no fundo, me reconectar com o adolescente atrevido que, 45 anos atrás, ingressou num curso livre de desenho e pintura doido para se expressar. Preciso reencontrar a chave daquela inquietação, daquele frescor, daquela ousadia.

Envelhecer o deprime?

LC: Não, mas me assusta. Nunca almejei a longevidade e sempre achei que morreria cedo. Por isso, não me angustio quando lembro que completarei 60 anos em 2011. Penso que dei sorte, que estou no lucro. (risos) O que me espanta é a rapidez do tempo - a ligeireza com que os dias voam depois que passamos dos 40. Uma rapidez estonteante, que se associa à falta de produtividade. Para um garoto, 12 meses fazem uma diferença brutal. Quantas coisas se modificam num intervalo tão pequeno! Já para um cinquentão, 12 meses normalmente não representam nada. Tudo permanece idêntico.

Recém-lançada, a coletânea Muchacha leva o nome da cantora e dançarina que o ator gay Djalma interpreta na trama. Ele se traveste. Você, à semelhança de Djalma, está usando brincos e um corte de cabelo bem femininos. Também aprecia o guarda-roupa das mulheres?

LC: Também. É uma descoberta nova, uma predileção que se insinua há séculos, mas que se manifestou com todas as letras apenas em 2009. Cinco anos antes, um dos meus personagens, o Hugo (veja acima), decidiu "se montar". Não sei exatamente por quê. Só sei que, de uma hora para outra, arranjou vestido, batom, salto alto e se jogou no mundo. Desde que nasceu, o Hugo se porta como um alter ego do Laerte. Ele costuma assumir nos quadrinhos grilos e desejos que se confundem com os meus. O fato de imitar o visual das mulheres certamente denunciava algo sobre mim - sobre ambições que eu me negava a explorar às claras. Foi quando recebi o e-mail de uma arquiteta, fã do Hugo. Quer dizer: de um arquiteto que abraçou a identidade feminina. O sujeito me perguntava se ouvira falar dos crossdressers, pessoas que gostam de botar roupas ou adereços do sexo oposto. Na época, não dei muita bola. Mas em 2009, por causa do aguçamento de minhas neuras existenciais, procurei um clube de crossdressers, frequentei reuniões organizadas pelo grupo e li a respeito do assunto. Depois, lentamente, agreguei enfeites femininos à indumentária masculina - brincos, colares, unhas pintadas. Hoje, dependendo da ocasião, me visto como mulher dos pés à cabeça, mesmo em lugares públicos, onde acabo passando despercebido. Outras vezes, ponho somente uma bijuteria, um esmalte. De início, meus filhos, minha namorada e meus amigos chiaram. Agora, já se acostumaram. Ou quase. (risos)

O que você sente quando se traveste?

LC: Um prazer indescritível, que nunca cogitei sentir. Recorrendo à prática, não planejo mudar de gênero definitivamente nem colocar em xeque a minha bissexualidade. O crossdressing, no meu caso, se refere menos à atividade sexual e mais à transposição de limites. É uma necessidade imperiosa de perscrutar e vivenciar os códigos femininos. Há ocidentais que se deleitam em investigar o Oriente. Experimentam comidas exóticas, fazem ioga, visitam a China. Da mesma maneira, por que um homem não pode empreender uma viagem radical pelo planeta insondável das mulheres?

Em 2005, você perdeu um de seus três filhos num acidente de carro. A crise atual tem alguma relação com a morte dele?

LC: Creio que sim. O desaparecimento repentino do Diogo, aos 22 anos, me abalou terrivelmente. Fiquei um mês mergulhado na absoluta incapacidade de desenhar. Quando retomei o trabalho, as dúvidas que me conduziram à guinada conceitual de 2004 recrudesceram. O entendimento de que um ciclo terminara se mostrou claríssimo. Desde então, vivo sem bússola, um tanto desnorteado. Ou melhor: existe um norte, só que é um norte débil, inseguro, mutante. Uma vertigem contínua. A perda do Diogo retirou o véu de tudo. Relativizou ainda mais quaisquer certezas, desnudou as minhas fragilidades e, paradoxalmente, revelou as minhas forças - ha medida em que toda fragilidade demanda uma força como resposta. Mas, na contramão do que parece, não extraí mensagens edificantes do episódio. A morte não nos traz lição nenhuma. É o desconhecimento pleno, um vazio que não se contenta com as justificativas da política, da sociologia, do direito, da psicanálise, da antropologia. Pegue o fim trágico do Glauco... (Glauco Villas Boas, cartunista e amigo de Laerte, assassinado em março junto do filho, Raoni, por um adepto da Igreja Céu de Maria). O que explica uma barbárie daquela? "Ah, como lideravam um culto religioso que ministra o santo-daime, Glauco e Raoni atraíram um punhado de malucos..." Será mesmo? Para mim, não importa! Nada esclarecerá o mistério de por que alguns partem do modo cruel como os dois partiram. Havia realmente necessidade daquilo? Daquele Armagedon doméstico? Do horror imensurável? Um pai presenciar a execução do próprio filho e depois morrer? (Fonte: Armando Antenore - Revista Bravo - set.2010).


Laerte Coutinho (São Paulo, 10 de junho de 1951) é um dos principais quadrinistas do Brasil.Estudou comunicações e música na ECA-USP, porém não se formou nestes cursos.
Laerte participou de diversas publicações como a Balão e O Pasquim. Também colaborou com as revistas Veja e Isto é e os jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo. Criou diversos personagens, como os Piratas do Tietê e Overman. Em conjunto com Angeli e Glauco (e mais tarde Adão Iturrusgarai) desenhou as tiras de Los Três Amigos. Em 2005, perdeu um de seus três filhos, Diogo, então com 22 anos, num acidente de carro. Nos últimos anos, passou a chamar a atenção pelo abandono de seus personagens e pela prática do crossdressing.
Em 2012, teve a residência roubada, e muitas de suas obras que estavam digitalizadas também foram levadas.
 Em 1968 Laerte concluiu o Curso Livre de Desenho da Fundação Armando Álvares Penteado. Em 1969 começou a cursar jornalismo na Universidade de São Paulo, mas não chegou a concluir o curso.Começou profissionalmente desenhando o personagem Leão para a revista Sibila em 1970. Durante a década de 70 ele ainda fundou junto com Luiz Gê a revista Balão enquanto ainda estudava na ECA, e trabalhou nas revistas Banas e Placar. Em 1974 faz seu primeiro trabalho para um jornal, a Gazeta Mercantil. No mesmo ano começou a produzir material de campanha para o MDB durante as eleições. No ano seguinte trabalhou na produção de cartões de solidariedade no movimento de auxílio aos presos políticos. Em 1978 desenhou histórias do personagem João Ferrador para a publicação do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Mais tarde viria a fundar a Oboré, agência especializada em produzir material de comunicação para os sindicatos. A editora publicou seu livro Ilustração sindical (1986), com mil ilustrações, quadrinhos e caricaturas, liberado para utilização por sindicatos e outras entidades. Laerte fez cobertura jornalística de três copas: a de 78 (para o jornal O Estado de São Paulo), a de 82 (para a Folha de São Paulo) e a de 86 (para O Estado de São Paulo).
No fim da década de 80 publicou tiras e histórias em quadrinhos nas revistas Chiclete com Banana (editada por Angeli), Geraldão (editada por Glauco) e Circo, todas da Circo Editorial, que mais tarde lançaria sua própria revista (Piratas do Tietê). Em 1985 lançou seu primeiro livro, O Tamanho da Coisa, uma coletânea de suas charges.
Em 1991 a Folha de São Paulo começou a publicar as tiras de Piratas do Tietê.
Regularmente o artista lança álbuns com coletâneas de suas tiras, principalmente pela Devir Livraria e L&PM Pocket.
Em 2009, Laerte foi convidado para participar do álbum MSP 50 em homenagem aos 50 anos de carreira de Mauricio de Sousa. Laerte criou uma história protagonizada por Franjinha e seu cachorro Bidu.
Laerte atuou como roteirista na TV, tendo colaborado em diversos programas da Globo. Escreveu scripts para os programas humorísticos TV Pirata e para as primeiras temporadas de Sai de Baixo. Ainda na área de humor escreveu para o quadro Vida ao Vivo que ia ao ar durante o Fantástico, em 1997.
Laerte também escreveu o programa infantil TV Colosso e o script de cinema para Super-Colosso: A Gincana da TV Colosso.
Estes são alguns personagens conhecidos de Laerte, sobretudo por suas tiras publicadas em jornais:
 Overman - um super-herói que talvez tenha a força do Super-Homem mas com certeza não possui a capacidade de dedução de Batman. Por vezes mostra ter moral e hábitos retrógrados. Seu maior inimigo é o próprio ego. Seu visual lembra Space Ghost, que já apareceu como convidado em algumas tiras.
 Deus - na representação de Laerte, com certeza não é onipotente. Tudo o que para nós é metafísico não passa de mera rotina para Ele. O que não quer dizer, no entanto, que tudo corra as mil maravilhas. Agora que o mundo e a humanidade já estão criados, Ele gasta a maior parte do tempo em afazeres menores, como discutir com o arcanjo Gabriel e jogar cartas com Buda.
 Piratas do Tietê - esses piratas trocaram o mar pelo não menos perigoso rio que corta a cidade de São Paulo. Hoje em dia a cidade é o alvo de seus saques e matanças.
 Hugo Baracchini - a visão cômica de Laerte do homem dos tempos modernos. Nele o autor criou uma eterna vítima dos problemas contemporâneos: ele já teve problemas em operar seu computador, teve de fugir de paparazzi, ficou complexado com o tamanho de seu pênis e chegou a sentir saudades do Regime Militar.
 Suriá - personagem de Laerte voltada para o público infantil. Suriá é uma menina de 9 anos, que mora com a família em um circo (onde trabalha como trapezista). É uma das raras personagens negras de histórias em quadrinhos.(Wikipédia)

  

3 comentários:

  1. Dos "Três Mosqueteiros" - ou Los tres amigos - da Piratas, acho que o Laerte era o que tinha o melhor traço; o Angeli era mais auto-referente e criativo e o mais econômico, sem dúvida, o Glauco.

    Mataram o Glauco, o Angeli assassinou a Rê-Bordosa e o Laerte...bem,esse parece que tem mais de uma vida..rss

    Beijo.

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  2. Amo seus trabalhos Laert! Irreverência que nos faz mudar a rota!

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