segunda-feira, abril 29

* Paulo Vanzolini, um homem de moral...


 







Ronda 
Paulo Vanzolini
De noite eu rondo a cidade
 A te procurar sem encontrar
 No meio de olhares espio em todos os bares
 Você não está
 Volto pra casa abatida
 Desencantada da vida
 O sonho alegria me dá
 Nele você está
 Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse
 Esse alguém me diria
 Desiste, esta busca é inútil
 Eu não desistia
 Porém, com perfeita paciência
 Volto a te buscar
 Hei de encontrar
 Bebendo com outras mulheres
 Rolando um dadinho
 Jogando bilhar
 E neste dia então
 Vai dar na primeira edição
 Cena de sangue num bar
 Da avenida São João
 
 
Essa musica não fez parte das minhas referências na adolescência, nessa época, já era uma música antiga, mas me fez chorar em Guarapari, de saudade de São Paulo, durante um almoço, frente  a uma peixada, num período de exílio voluntário. Tem a cara de São Paulo, é de um compositor paulistano, Paulo Vanzolini, apaixonado por Sampa, que morreu nessa madrugada aos 89 anos. Um homem de moral, mostra a pluralidade e as contradições paulistanas, onde o boêmio pode muito bem conviver dentro de um cientista de talento raro.
Fica aqui a homenagem.
 
paulo_vanzolini"Na década de 1940, Paulo Vanzolini dedicou-se à boemia, começou a compor, formou-se médico e iniciou sua internacionalmente bem-sucedida carreira de zoólogo.
É irresistível especular que há mais complementaridade do que mera coincidência nessa superposição de atividades com aparências tão diferentes.
O cientista que conhecia todas as minúcias de répteis e anfíbios também era o autor de sambas que iam direto ao ponto, fazendo ricas apresentações de personagens e histórias sem se perder em versos demais, salvo exceções extensas como a primorosa “Capoeira de Arnaldo”.
“Vida comprida e vazia/ Dias e noites iguais./ Morte é paz” (“Morte É Paz”); “Quando eu for, eu vou sem pena/Pena vai ter quem ficar” (“Quando Eu For, Vou sem Pena”); “Só pretendo/ Que de tanto mentir,/ Repetir que me ama,/ Você mesma acabe crendo” (“Mente”).
Além dessas músicas amargas, com o travo das noites paulistanas que ele frequentou e interpretou tão bem, há as divertidas, temperadas com o humor dos boêmios mais inteligentes.
“Mulher que não dá samba eu não quero mais” (“Mulher que Não Dá Samba”); “Orgulho eu não tenho/ Mas sou homem demais pra cinquenta por cento” (“Maria que ninguém queria”); “Pondo a modéstia de parte,/ É Napoleão Bonaparte e eu/ Que sabemos de verdade/ O quanto dói uma saudade” (“Napoleão”).
Em 2003, foi lançada a caixa de quatro CDs “Acerto de Contas”, com 52 músicas de Vanzolini regravadas por Chico Buarque, Paulinho da Viola, Miúcha, Elton Medeiros, Martinho da Vila e muito mais gente.
Era a prova irrefutável, caso alguém ainda tivesse dúvida, de que sua obra ia muito além de “Ronda” e “Volta por Cima”, seus dois grandes sucessos – tão grandes que incomodavam a sua discrição, sobretudo o primeiro, pois não morria de amores pelo samba-canção terminado num bar da avenida São João.
Paulo Vanzolini não se reduz a classificações fáceis. Não é apenas um cronista de São Paulo, embora seja um dos melhores, com mais nuances do que seu amigo Adoniran Barbosa.
Não é só da fossa, da bossa, das moças. Mexeu em temas e linguagens variadas com seu bisturi preciso. O jeito econômico, refletido numa discografia de quatro títulos (apenas um com sua voz), é coerente com o que compôs.
Ouvi-lo é sempre comover-se e, ao mesmo tempo, levantar e sacudir a poeira."
(Luiz Fernando Vianna é jornalista, autor de “Aldir Blanc – Resposta ao Tempo” (Casa da Palavra).Folha)

quarta-feira, abril 24

* O carro inteligente e a falta de inteligência....





Imagine você: Milhares de dólares em investimentos, um projeto de anos, sonho de muitos, trabalho de tantos brasileiros, em poucos minutos vai tudo pro ralo pela falta de inteligência de um ou outro!
Parabéns aos pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santos, mestres e alunos envolvidos no projeto, todos atentos, roendo as unhas para ver finalmente a apresentação de sua genial obra, que foi um fracasso, não pelo digníssimo e abnegado trabalho dos pesquisadores, mas pela falta de inteligência e cuidados de profissionais da midia sem o menor comprometimento com a seriedade e respeito ao trabalho dos outros.
Um acidente! Lamentável! Não pelos cinco pontos na boca, mas pela desmoralização de um trabalho sério, provocada pela falta de profissionalismo, pela eterna mania da midia preocupada com seus preciosos minutos patrocinados.

Vida longa aos abnegados cientistas brasileiros, que aprendam agora onde não mostrar o seu trabalho.

sábado, abril 20

* Atenção ao sábado



Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã. 
Domingo de manhã também é a rosa da semana. 
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.

 

Clarice Lispector

 extraído do livro Para não Esquecer, Editora Siciliano – São Paulo, 1992

terça-feira, abril 16

* O Haiti não é aqui...


Em tempos de Marcos Feliciano, de julgamento dos policiais envolvidos no massacre dos 111 presos do Carandiru....



Haiti
Caetano Veloso


Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui