quarta-feira, março 14

* Relatório Hite, sobre a sexualidade feminina









Incentivada por uma pergunta sobre a sexualidade feminina, resolvi postar a respeito do Relatório Hite, mas, pesquisando, conclui que não faria melhor do que nesse texto que faz parte de uma tese de doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina. Texto de Tito Sena.
Segue o excelente texto:

A sexologia é um campo teórico e prático com status de ciência entre estudiosos de diversasáreas, sem especificamente formar uma disciplina tradicionalmente acadêmica, transitando em proximidade com Medicina, Psicologia, Antropologia, Biologia, Sociologia, Direito e outrossaberes. Não obstante, é marcada por duas tendências: uma funcional, mais biológica, portanto médica; e outra antropológica, mais cultural e social.
No campo de pesquisa acadêmica, no século XX, a sexologia foi destituída de certos aspectos funcionais, e se re-direcionou para vertentes plurais (históricas, culturais, antropológicas, sociais, políticas, etc.) tendo os estudos sobre a sexualidade como convergência temática, não eliminando, entretanto, outros campos de conhecimento.
Entre estes estudos do século XX, três em especial obtiveram repercussão mundial: os relatórios Kinsey (1948 e 1953), os relatórios Masters & Johnson (1966 e 1970) e os relatórios Hite (1976 e 1981).
O relatório Hite sobre a sexualidade feminina obteve repercussão ao divulgar, através de relatos das próprias mulheres, a extraordinária capacidade orgástica clitoriana e a ênfase na masturbação como fonte de satisfação sexual, fato já levantado por Kinsey, mas muito explorado e valorizado por Hite.
É do relatório Hite, que este curto artigo se ocupará.
II – Os relatórios Hite: questionários e narrativas Shere Hite (1942- ) se formou em História Americana e Ideologia das Ciências na Flórida e fez doutorado em História na Universidade de Columbia. É autora de diversos livros sobre a mulher e foi fortemente influenciada pela 2ª onda do movimento feminista na década de 60 e 70.
Atuou, entre 1972 e 1978, como Diretora do Projeto Feminista de Sexualidade da National Organization for Women (NOW), organização4 ativista feminista fundada em 1966 com a finalidade de agir pela igualdade de todas as mulheres e pela eliminação da discriminação no  trabalho, na escola, no sistema judiciário e outros setores da sociedade, além de lutar pelos direitos reprodutivos das mulheres e contra quaisquer formas de violência. Neste contexto histórico, especialmente o norte americano, que se situa a emergência de seus relatórios, pouco tempo posterior às produções clássicas de Betty Friedan (1921-2006) - Mística Feminina em 1963 , Shulamith Firestone (1945- ) - A Dialética do Sexo em 1970, Germaine Greer (1939- ) – A Mulher Eunuco em 1970, Juliet Mitchell (1940- ) - Psicanálise e Feminismo em 1974, e Kate Millet(1934- ) - Políticas Sexuais em 1970, com suas forças contestatórias, sociais e políticas.
Hite organizou as respostas de mulheres com idade entre 14 e 78 anos para lançar o The Hite Report (Relatório Hite sobre a Sexualidade Feminina) em 1976 nos EUA. O relatório foi traduzido e lançado em dezessete países, tendo sido censurado em alguns, inclusive proibido5 no Brasil até 1978. Segundo a autora, de um total de quase 100.000 (cem mil) formulários distribuídos, 3.019 (três mil e dezenove) foram devolvidos. Para editar o The Hite Report on male sexuality (Relatório Hite sobre a Sexualidade Masculina), em 1981 nos EUA, dispôs de respostas de homens com idade entre 13 e 97 anos. Neste caso, o livro teve edição no Brasil, no ano seguinte, 1982 (período, portanto, de abertura política). Segundo Hite, de um total de 119.000 (cento e dezenove mil) foram devolvidos 7.239 formulários.
O Relatório Hite sobre a Sexualidade Masculina 6 seguiu o mesmo sistema de pesquisa do relatório feminino, ou seja, respostas para longos (mais longos ainda) questionários abertos, nos termos da autora, do tipo ensaístico. Iniciado em 1974, após sete anos de trabalho (sendo cinco anos de distribuição encerradas em 1979), foi editado em 1981 nos EUA.
No prefácio da edição brasileira, Shere Hite destaca o caráter de anonimato do seu questionário:
Preferiu-se o questionário escrito à entrevista pessoal, uma vez que para preservar a total  honestidade das respostas era necessário que os homens que respondessem a ele tivessem a proteção do anonimato total. Foi por isso que se lhes pediu que não assinassem as respostas, e que as devolvessem pelo correio. (HITE,1982: 08).
Ainda assim, segundo Hite, houve mulheres e homens que fizeram questão de assinar o questionário, fazendo de seu depoimento uma afirmação de identidade e o anonimato, irrelevante para a oportunidade de exposição de suas práticas sexuais, sem medos de sanções ou julgamentos.
Hite procurou no relatório masculino, justificar-se das críticas recebidas pelo relatório feminino, quanto à sua metodologia. No prefácio e nos apêndices, isto fica taxativamente explícito, fazendo, neste sentido, referências às pesquisas de Kinsey e Masters & Johnson:
Esse estudo é representativo? Nenhum estudo em larga escala já produzido no campo da pesquisa sexual conseguiu ser perfeitamente representativo, devido à natureza bastante sensível das questões, incluindo os de Kinsey, Masters & Johnson e o meu próprio anterior. O melhor que se pode fazer é tentar aproximar, o 3 máximo possível, fatores como idade, raça, etc. dos traços da população em geral. (HITE, 1982:08).
Hite destaca como uma das características fundamentais de seus relatórios, o fato de
apresentarem as citações e narrativas para ilustrar suas descobertas, o que, segundo ela, permite uma comunicação entre os participantes da pesquisa e os leitores, proporcionando a estes últimos, a oportunidade de terem suas próprias opiniões e efetuarem suas reflexões.
III. O Relatório Hite sobre a Sexualidade Feminina (1976)
Shere Hite inicia seu Relatório Hite sobre Sexualidade feminina afirmando ser a masturbação um dos assuntos mais importantes de seu livro, uma vez constituir-se fonte fácil de orgasmos para a maioria das mulheres. A facilidade com que as mulheres têm orgasmos pela masturbação contradiz os estereótipos gerais sobre a sexualidade feminina, especificamente aqueles sobre a excitação lenta e sobre a raridade do orgasmo das mulheres. Enfatiza que “não é a sexualidade feminina que tem um problema (uma disfunção) – é a sociedade que é problemática na sua definição de sexo e no papel subordinado que essa definição confere às próprias mulheres” (HITE, 1979:04).
Nos depoimentos, a maioria das mulheres disse ter prazer fisicamente na masturbação, mas não psicologicamente, embora outras não se permitiam ter prazer na masturbação, mesmo fisicamente. Não obstante, quase todas as mulheres foram educadas de forma a não se masturbarem.Além disso, a maioria das mulheres sentia a masturbação importante como substituto do sexo (ou do orgasmo) com o parceiro. Se para algumas a masturbação as ajudava a se relacionarem melhor sexualmente com outra pessoa, outras viam-na como uma forma de obter independência e autoconfiança.
Houve uma relativa concordância de que o melhor jeito de aprender a gozar é se masturbando, sendo que algumas delas aprenderam como ter orgasmos, depois de anos de incapacidade para tal. Em contrapartida, as mulheres muitas vezes ignoram as informações sobre sua sexualidade, conservando o mito da masturbação, impedindo-as de explorar e apropriar-se do seu próprio corpo.
Apesar de o livro ser de depoimentos, Hite não se omite de posicionar-se, seja através de opiniões, de conclusões científicas de outros autores (Kinsey, Masters & Johnson, Helen Kaplan, Mary Jane Sherfey, Seymour Fisher, etc.) e, sobretudo, politicamente como feminista:
O direito ao orgasmo tornou-se uma questão política para as mulheres. Embora não haja nada de errado com o fato de não ter orgasmos, assim como não há nada de errado em enfatizar e compartilhar o prazer do outro, há alguma coisa de errado quando isto se torna um padrão, quando o homem sempre tem o orgasmo e a mulher não. (...) É hora de recuperamos nossos corpos, de começarmos a usá-los nós mesmas para o nosso próprio prazer. (HITE, 1979:68-69). (grifos meus).
A pesquisa aponta o fato da maioria das mulheres não gozar normalmente em decorrência do coito. Para Shere Hite o orgasmo no coito consiste num ponto crucial de discussão em relação à sexualidade feminina, provocando sentimento de insegurança, frigidez, culpa, vergonha e principalmente o fortalecimento do mito orgástico vaginal, fazendo com que se instale a grande indústria da objetivação sexual na busca da “cura fora de si” (palavras suas) do tão almejado prazer.
No tocante à controvérsia orgasmo clitorial/vaginal, o exame é feito baseado nas diferenças entre o orgasmo com ou sem a presença do pênis na vagina. As depoentes se dividem em dois grupos: um grupo descreve o orgasmo clitoriano como mais intenso e concentrado e o outro define o orgasmo vaginal como mais difuso e mais distribuído pelo corpo. Mas Hite não deixa de registrar sua opinião sobre a intensidade superior e forte dos orgasmos através da masturbação (estímulo clitorial) em comparação ao proporcionado pela penetração vaginal.
O relatório explora o que a autora denomina dois grandes mitos sobre a sexualidade feminina:
1°) As mulheres interessam-se menos por sexo e orgasmo que os homens;
2°) As mulheres demoram muito mais tempo que os homens para gozar, devido à fragilidade e delicadeza feminina. Segundo Hite, o não ter orgasmo no coito é uma adaptação dos corpos femininos, tendo em conta o coito nunca ter sido praticado de modo a estimular o orgasmo para a maioria das mulheres. Sendo assim, deve-se considerar o aumento das chances de um orgasmo durante o coito depender de um relacionamento sexual com um parceiro atento às necessidades individuais.
A pesquisa ressalta ainda que, segundo as entrevistadas, os homens não têm o mínimo de conhecimento da anatomia e dos desejos femininos. Para Hite, “O fato de que não há uma ‘iconografia’ dos órgãos genitais femininos, enquanto os pênis são glorificados, é mais um reflexo da forma pela qual o sexo reflete a desigualdade cultural entre mulheres e homens” (HITE, 1979:263).
Em suma, Shere Hite a partir dos relatos de suas pesquisadas, conclui que as dificuldades do orgasmo feminino evidenciam a supremacia genitalizante e mecânica masculina, constituída pela ereção, penetração e orgasmo, excluindo a mulher da possibilidade de expressão e satisfação. Em suas palavras, está sacramentado o sexo ser uma atividade par, mas infelizmente com satisfação ímpar.
A análise estatística das respostas é apresentada ao final do relatório, mas destacamos um resultado em especial para lançar uma provocação e reflexão: 30% das mulheres, apenas, podem gozar regularmente no coito – isto é – podem ter um orgasmo no coito sem um estímulo clitorial manual mais direto, ou seja, para 70%, o coito – o pênis mexendo na vagina – não leva regularmente ao orgasmo. Logo: o “normal”, estatisticamente falando, é a mulher não chegar ao orgasmo com um homem mexendo seu pênis na vagina. Ou o normal é o ideal de sentir orgasmo, portanto, os 30%?
IV – Pontos finais....
O estudo realizado ancorou-se fundamentalmente em Michel Foucault, principalmente suas elaborações presentes em História da sexualidade I - A vontade de saber, e sua crítica no modo como a sociedade ocidental situa a sexualidade: na configuração de uma scientia sexualis (ciência sexual) desenvolvida para dizer uma verdade no sexo, verdade entendida como construtora de normatividades (pelas formas de saber) e normalidades (pelas forças de poder).
Para Foucault (1988) a procura da verdade no sexo foi e é obtida através de inúmeros mecanismos, incluindo, por exemplo, a confissão. O deslocamento da confissão religiosa cristã a um projeto de discurso científico, atravessou o século XIX até sua consolidação, sendo um marco na constituição das ciências sexuais.
Neste sentido, os relatórios Hite, através de questionários, enquetes, entrevistas, narrativas descreveram comportamentos íntimos sexuais, relataram privacidades, expuseram medos, receios, em suma: apresentaram “novas” possibilidades de descobertas e explicações sexológicas. Os depoimentos, os relatos, as descrições minuciosas sobre o corpo, reações físicas, zonas erógenas, preferências sexuais, segredos, os desejos e as fantasias sexuais, insistentemente citadas e referenciadas, são mentiras ou são verdades? São verdades produzidas historicamente, a partir das contribuições de diversas ciências, com “especialistas” legitimando as informações distribuídas e divulgadas através de formas discursivas.
Mas é na ânsia de respostas verdadeiras, que emerge a insistente pergunta: “Sou normal”?
“Sou anormal”? O que é normal para quem pergunta? Será que bastaria ouvir de um “especialista” a resposta “você não é anormal!” ou ouvir “isto não é doença!”? As estranhezas ou as discrepâncias de comportamento sexual são colocadas em relação a mim ou em relação aos outros? Somos o que o outro confirma que somos? Somos o que o outro afirma que somos? A diferença entre afirmação e confirmação não é apenas de ordem semântica. Eu sou o diferente, ou os outros? Em resumo: quem é o normal? Como algo ou alguém é considerado anormal?
Nestas escalas classificatórias de (a)normalidade, o recurso à estatística é uma prática comum e pretensamente legitimadora de verdade científica. Ao ver os percentuais estatísticos num livro “científico”, o enquadramento comparativo é automático: estando nos 70% ou nos 30%, é o número que me avaliará, é um “diagnóstico estatístico”, não é um diagnóstico clínico, cuja mediação (pela média numérica!) é relatada pelos participantes das enquetes, logo, os outros. Se estiver na maioria, tudo bem, sou normal; caso contrário, tendo este (pré/pseudo) diagnóstico estatístico (científico) como referência, procurarei (se puder) um especialista para confirmação através de um diagnóstico clínico (científico). È a prática real da normalização que determina o conceito de normal e é esta a possibilidade de um conceito ser incorporado como um preceito.
Nesta teia de jogos numérico-estatísticos (verdadeiros!?), as pessoas confundem fatos (descrições) com valores (apreciações), quantificações com qualificações, as normas com os normais.
(Tito Sena2 - UDESC)




Este Artigo é parte de um capítulo da tese de doutorado intitulada Os relatórios Kinsey, Masters&Johnson, Hite: as sexualidades estatísticas em uma perspectiva das ciências humanas, do programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, realizada com a orientação da Profª Drª Mara Coelho de Souza Lago e Co-orientação da Profª Drª Miriam Pillar Grossi. Por limitação de texto não vamos expor considerações sobre os relatórios Kinsey e Masters&Johnson.
 

4 comentários:

  1. Gostei de saber mais sobre minha sexualidade.e perceber que devemos ter muito prazer com ou sem um parceiro, somos mulheres e merecemos isso!
    Grata.

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  2. Esse relatório Hite é extremamente tendencioso e eu tenho minhas dúvidas quanto à imparcialidade da metodologia utilizada nessas pesquisas. Além do fato do anonimato não garantir uma margem segura de opiniões honestas. Já o Masters e Johnson foi duramente criticado por tratar a sexualidade como um mero problema estatístico.
    Acho que seria necessário realizar um novo relatório, pois os dados do Hite são dos anos 70. As informações desse relatório serviram mais para confundir do que para esclarecer.

    Acredito que os livros e vídeos na internet do José Ângelo Gaiarsa são mais esclarecedores e fáceis de assimilar do que essa enxurrada de estatísticas do Hite que criou uma falsa dicotomia entre ser 'normal' ou 'anormal'.

    Abraços.

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  3. Wellington, respeito a sua opinião, mas como mulher que leu o livro, tenho certeza que teve uma grande importância. Foi o primeiro estudo que se popularizou, não ficou restrito a estudiosos e foi onde muita mulher se sentiu menos "culpada" por gostar mais de um amasso do que da penetração.Só isso, posso te garantir, livrou muita gente da loucura, da frustração de se sentir inadequada o resto da vida. Acredito até que só a partir das discussões que essa pesquisa gerou, é que as mulheres começaram a trocar informações sobre o assunto.
    Obrigada,

    Beijos meus

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    1. llManuh, a importância histórica do relatório Hite foi crucial para época, isso foi fato. Mas o que eu tentei relevar foi que os dados desse relatório não são 100% confiáveis, além de criar grilos do tipo: "Afinal, eu sou mesmo normal por não me encaixar nesse ou naquele perfil?"

      A sexualidade da mulher é completamente diferente da sexualidade do homem e esse relatório conseguiu desmistificar essa ideia. O grande problema foram os estereótipos e as estatísticas baseadas numa época onde ainda havia muita repressão à sexualidade da mulher. O meu medo é que relatórios como esse acabem virando uma Bíblia feminista baseada em valores anacrônicos e duvidosos.

      Beijos.

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