terça-feira, março 20

* De Elis Regina a Maria Rita, não necessariamente nessa ordem


Da semelhança do timbre à lembrança da maneira de interpretar. Desde que se lançou como cantora, Maria Rita teve de lidar com as inúmeras comparações com a mãe, Elis Regina (1945-1982). Uma responsabilidade imensa já que esta é considerada uma das maiores intérpretes brasileiras.
Aos 24 anos, quando estava lançando o seu primeiro CD, Maria Rita disse que sempre teve a consciência de ser a única filha mulher de uma grande cantora. Por isso não tinha pretensões de cantar músicas do repertório da mãe.
Maria Rita falou da saudade que sente da mãe: "toda vez que falo nela, me emociono"
Dez anos depois, as comparações não se extinguiram. Mas Maria Rita aceitou o desafio e subiu, nessa segunda-feira (19), no palco do Vivo Rio, no Rio de Janeiro, para o primeiro de uma série de shows cantando músicas gravadas por Elis. “As pessoas sempre me perguntam por que demorei tanto para cantar músicas da minha mãe. Toda vez que falo nela, me emociono. Mãe é mãe, né? Dá saudade”, disse ela, vestindo um macacão branco com uma capa esvoaçante.
Em duas horas de apresentação, Maria Rita mostrou que as comparações tinham fundamento. Em nenhum momento ela tentou se passar pela mãe, mas era visível a homenagem aos gestuais, timbres e firulas de Elis. Em canções como “Águas de Março”, de Tom Jobim, e “Alô Alô Marciano”, de Rita Lee, isso ficou mais evidente. “Obrigada por virem de coração aberto e entender que isso é apenas uma homenagem”, agradeceu a cantora.
(Útimo Segundo, março 2012) 
 Aos 36 anos, Elis Regina, a melhor cantora do Brasil, foi achada morta, trancada em seu quarto, onde tomara a derradeira dose de cocaína.

27 de janeiro de 1982

A morte da melhor cantora brasileira provocou um choque nacional, assim que a notícia circulou pelo rádio e pela televisão na manhã da última terça-feira. Cheia de vitalidade nos seus 36 anos, Elis Regina de Carvalho Costa, três filhos, passou metade de sua vida em estúdios, distribuindo uma voz impecavelmente afinada por 27 LPs, catorze compactos simples e seis duplos, que venderam algo como 4 milhões de cópias. 

A autopsia que determinou a ingestão de cocaína e álcool como causa mortis, pegou de surpresa até amigos próximos.

Apesar de sua competência profissional, Elis Regina se confessava uma pessoa profundamente insegura - e extraía um pouco do autoconfiança no consumo da cocaína. Dona de um caráter e comportamento conturbados, que freqüentemente a faziam expressar-se de maneira tortuosa e torturada, Elis não conseguiu, como muitos outros colegas do mundo artístico, adquirir a segurança que procurava sem pagar um alto preço por ela. Sua provável inexperiência no convívio com a droga levou-a à fatal ingestão da semana passada - e abriu sua vida pessoal a uma investigação certamente penosa e dolorida para os que viviam próximos a ela.


É o que explica retratos tão diferentes que fazem dela mesmo os amigos mais chegados – dos quais Elis cobrava atenção, telefone-me, carinho, mas em relação aos quais era capaz de repentinas explosões de generosidade. Quando soube que sua amiga Ione Cirilo estava sem dinheiro, pagou todas as prestações que ela devia – sem dizer uma palavra à amiga. Em outro repente, na greve dos operários do ABC, em 1980, doou 180 000 cruzeiros para o fundo de greve – e arrecadou entre amigos, durante um jantar, mais 70 000. "Eu não vim para os canapés, vim para a feijoada", justificava-se com uma ponta do misticismo que sempre a envolveu.

As razões que a levaram à morte podem continuar envoltas em mistério, mas a morte não conseguiu- lhe roubar o sucesso. Num único dia da semana passada, a Odeon, gravadora do seu último LP, Elis Regina, recebeu 19 000 pedidos de cópias do disco, que vendera nos últimos dois anos modestas 50 000 unidades. Nas próximas semanas, a Polygram vai lançar uma caixa de discos com sua obra, e a WEA anuncia seu último disco inédito, Elis em Montreux, para breve. De Elis Regina ficou a voz – exatamente o que esse complexo ser humano tinha de melhor. 

A perfeita alquimista

Misturando técnica e emoção, Elis resistiu às fórmulas fáceis e se tornou a maior cantora do Brasil


Em dezoito anos de carreira, Elis Regina percorreu com sucesso o destino dos artistas que jamais se contentam com o brilho do próprio ofício. A melhor cantora da música brasileira - ou, pelo menos, a dona da mais perfeita alquimia entre técnica e emoção – vestia a fama como se fosse um daqueles vestidos caros, que, por belos, devem ser sempre trocados. A cada vitória ela safa, inquieta, em busca de uma nova parada: "Sempre vou viver como camicase. É isso que me faz ficar de pé", confessava.

E foram muitos os vôos vitoriosos dessa estrela desde que ela chegou ao Rio de Janeiro, em 1963, com 18 anos e 36 000 cruzeiros na mala. Aquela pequena gaúcha de 1,53 m ("Meu problema são 10 centímetros a mais; então estaria tudo resolvido") desceu nervosa numa música popular enriquecida pela melodia da bossa nova e empobrecida pela escassez de intérpretes que levava ao reinado de Nara Leão, desafinada, porém levemente soturna, como se queria.

Agitada, chamaram-na "Pimentinha" . Movendo os braços para cima e para baixo, foi ridicularizada pelo cronista Sérgio Porto, que dizia não saber se ela era "uma cantora que nada ou uma nadadora que canta". Havia nela, porém, uma pessoa enérgica, inquieta e, acima de tudo, uma cantora afinada. Não conseguiu ancorar-se num gênero que lhe garantisse o sucesso comercial, como sucedeu a Maria Bethânia no modelo "amor inesquecível". Muito menos agarrou-se à repetição de adoráveis recursos, como faz Roberto Carlos. Faltou-lhe a alegria contagiante de Gal Costa e o pique de Rita Lee. Mas tinha algo que faltava a todos e, por isso, nas próximas décadas, quando se procurar a voz desta época, ela estará num disco de Elis.

CORTEJADA PELA ESQUERDA - Poucos são os cantores brasileiros que se fizeram acompanhar por tantos compositores novos. Elis foi a primeira a gravar o desconhecido baiano Gilberto Gil e o mineiro Milton Nascimento. Há pouco anos, descobrira João Bosco, Aldir Blanc e Belchior. Nesta semana, começaria um novo LP onde incluíra uma compositora, Irinéia Maria, que nem sequer vira pessoalmente. Tinha tudo para dar certo, e deu, naquilo que sabia fazer muito bem: cantar. Surgiu sorridente, com seus dentes pequenos e o cabelo curto, e assim poderia ter ficado por anos e anos, como eterna parceira de Jair Rodrigues. Mas recuou em busca de maior perfeição técnica, roçou o perigo das interpretações frias e, em 1975, com o show 'Falso Brilhante" conseguiu combinar a cantora emocionada de antes com a técnica conquistada, firmando-se num estilo em que morreu insuperável.

Mas, se o camicase voou bem no ofício, também afundou em ressentimentos e inimizades na vida. Como, numa de suas distorções, o meio cultural brasileiro exige do artista não apenas a arte mas uma espécie de atestado de idoneidade política – de direita para o governo e de esquerda para a oposição –, Elis morreu filiada ao Partido dos Trabalhadores, depois de um, percurso sinuoso e agressivamente patrulhado. Em 1969, ela cantou na Olimpíada do Exército e em 1972 nas cerimônias pomposas do Sesquicentenário da Independência. Por isso, foi colocada no "cemitério dos mortos – vivos" que o cartunista Henfil – presente ao seu enterro – gerenciava na ocasião. Ela partilhava esse campo-santo com Marília Pêra, Roberto Carlos, Tarcísio Meira, Glória Menezes e Pelé. Em 1978, cortejada pela esquerda, fazia campanha para o professor Fernando Henrique Cardoso, candidato do MDB ao Senado por São Paulo. Mas, aos amigos, confessava que preferia o veterano Franco Montoro.

A participação de Elis em manifestações oposicionistas reconciliou-a com a esquerda e, com o tempo, as mesmas patrulhas que apedrejaram passaram a afagá-la, tudo num esforço inútil quer do ponto de vista estético, quer no aspecto político. É improvável que ela tenha trazido votos a candidatos da oposição, assim como é certo que não foi pela sua participação em festas do regime que a ditadura viveu tanto. Esteticamente, ela, que lançava novas músicas e novos nomes, pouco acrescentou à sua biografia cantando músicas simpáticas A esquerda, pelo simples motivo de que Barbra Streisand e Joan Baez não são a mesma pessoa.

A irrequieta personalidade da "Pimentinha" levava as pessoas a querer afinar, sem sucesso, a sua conduta. E, a cada "desafino" de Elis, brotavam sarcasmos. O maledicente compositor Carlos Imperial, ao saber que ela se casaria com o produtor Ronaldo Bôscoli, comentou: "Bem feito para os dois". Mas isso era pouco. A cantora Maysa garantia ter a prova de que faltava caráter a Elis: ela a teria induzido a beber numa noite, para derrubar sua apresentação num palco que ocupava em seguida. A acusação seria indiscutível se viesse de um semi-abstêmio como Roberto Carlos. Maysa, porém, dificilmente precisaria ser induzida a mais um copo.






AGUERRIDA E AGRESSIVA - "Elis vivia sempre com a corda esticada, a mil por hora, e mudava de opinião em fração segundos", observou na semana passada o compositor Edu Lobo. O psicólogo Roberto Freire, a quem no sucesso do show "Falso Brilhante" ela atribuiu às emoções que distribuía do palco, tornou-se, meses depois, "um mau-caráter aproveitador". Roberto Carlos, de quem ela morreu amiga, já fora "infantil e fugaz". E seu segundo marido, o compositor César Camargo Mariano, com quem vivera feliz no alto da serra da Cantareira por nove anos e dois filhos, virou, com o fim do casamento, "um explorador". Como cantora, podia influenciar pessoas. Como pessoa, não conseguia fazer muitos amigos.

Pudera. Teve um rápido romance há um ano com o cantor Fábio Júnior e, ao encerrá-lo, fulminou o ex-namorado: "Ele foi como um sorvete, gostoso e rápido, mas brigamos quando eu disse que ele estava com saudade do plim-plim da Globo". Aguerrida antes e agressiva depois, Elis sempre suportou mal o presente. Assim como foi capaz de voar para Nova York em busca do "sorvete" e de moê-lo depois, sustentava, enquanto o romance durou, que vivia um grande amor. Mesmo no palco, passava por explosões capazes de fazer com que o produtor Roberto de Oliveira dissesse, em tom de brincadeira, "ela tem tudo para ser a Judy Garland brasileira, mas não bebe".

Em 1977, antes de entrar no palco onde pouco depois sua grande rival Maria Bethânia, ela teve uma crise de choro e recusou-se a cantar. Temia audiência, mas ao dominá-la, saiu coberta de aplausos e chegou feliz ao camarim, onde, pouco depois, começou a quebrar tudo. Por quê? Ouvira os aplausos dados a Bethânia e julgara-se batida. "Quem é melhor? Eu ou a Bethânia", perguntava com alguma insistência, há poucos anos, sem segurança suficiente para acreditar na sinceridade de quem lhe garantia que era ela.

SEVERO APRENDIZADO - Era a melhor porque poucas cantoras tinham o seu espectro vocal. Rita Lee admite que não tem a metade da extensão de Elis. Bethânia sabe que lhe faltam os agudos. Gal, com extensão e agudos, tem graves pouco educados. Elis Regina, que no início da carreira esbanjava tanto agudos quanto fricotes, foi buscar pelo exercício os graves que lhe faltavam e, ao final de um severo aprendizado, era capaz de acompanhar as difíceis construções harmônicas de Milton Nascimento que já machucaram tantos intérpretes.

Assim como não há quem lhe tire os méritos de grande cantora e intérprete, nenhuma briga poderia tirar-lhe a conduta profissional impecável com músicos e colegas. Não apenas protegia valores jovens como, também, defendia os interesses de quem trabalhava ao seu lado. Há dois anos, quando fazia no Canecão o show "Saudades do Brasil", soube que o empresário Mário Priolli negara um aumento aos bailarinos. "Ou aumenta a moçada ou eu paro com o show", disse a Priolli recebendo de volta o aumento. Doou dinheiro para entidades de defesa do direito autoral, e , recentemente, quando um grupo de cantores foi a Brasília pedir ao governo que liberasse o disco da taxação dos supérfluos, fulminou a iniciativa: "Isso é defender as gravadoras. Elas é que têm de se preocupar com essa questão e não os artistas, de quem já tiram sua riqueza".

Depois do rompimento com o compositor Camargo Mariano, Elis recompôs sua vida sentimental com o advogado Samuel Mac Dowell Figueiredo. Trocou a casa ecológica da serra da Cantareira, onde fazia longas análises dos confortos da vida silvestre, por um apartamento no centro dos espigões paulistas. Deixou o espiritismo que a levava a psicografar mensagens de um avô índio, perdeu o interesse pela parapsicologia e concentrou--se nas virtudes do vegetarianismo – ostensivamente, só bebia guaraná em pó. Ao lado de tanta excentricidade, porém, estava uma vocação caseira. Comia suas verduras mas oferecia aos convidados lombo de porco com alecrim e molho de cerveja. Metódica, acompanhava atentamente a educação dos filhos, a arrumação dos copos, e era capaz de irritar-se se as suas meias coloridas fossem arrumadas fora da escala cromática que pacientemente concebera. "Eu conheci o sucesso sem estar preparada para enfrentar a vida", reconhecia Elis numa daquelas frases que soam proféticas depois que se morre. 

No seu caso, porém, esse despreparo aparente não se refletiu quando ela chegou morta ao Hospital das Clínicas, mas sobretudo nos dias em que, vivíssima, era aplaudida em seus shows. A razão dessa angústia poderia estar na origem humilde, mas nem todos os artistas nascidos humildes são ostensivamente angustiados no sucesso: a imagem serena de Roberto Carlos prova isso à exaustão. A melhor explicação, e a única capaz do desembocar num copo onde se misturam álcool e cocaína às 10 horas da manhã, está numa competitividade exacerbada. Compulsão esta germinada numa menina que aos 11 anos cantava no Clube do guri, programa de calouros de Porto Alegre, e aos 22 casou-se de vestido cumprido com noivo de fraque na capela Mayrink, templo do pernosticismo social carioca.

SEGURANÇA FUGAZ - Elis nunca foi uma artista publicamente envolvida com drogas Pelo contrário. Ao longo de toda a década do tropicalismo ela hostilizou o desbunde chegou a sugerir que se desligassem as tomadas dos palcos onde subisse Caetano Veloso, para que não pudesse ligar a guitarra elétrica. Nada mais "careta". Afinal, em sua casa havia uma garrafa de vermute, bebida improvável na prateleira de alguém que efetivamente procura álcool. Assim, a cocaína não entrou no quarto de dormir do Elis pela porta do modismo, mas precisamente pelo pique, pela sustentação que dá ao competitivo, pela segurança fugaz que oferece aos tensos. Nesse sentido, o próprio pó é a quintessência do caretismo.

Paradoxalmente, ela morreu quando se orgulhava de viver com um homem, com quem "não poderia competir", pois Mac Dowell, ao contrário de todos os seus namorados e maridos, ligados ao mundo do espetáculo, é um bem-sucedido advogado, que, antes dela, jamais chegara sequer aos bastidores. "Passei anos complicando as coisas, agora quero voar", dizia há poucos meses. E, de fato, pelas primeiras reações de quase todos os seus amigos, ela vivia não só um período de grande densidade artística, desde o sucesso do show "Trem Azul", do ano passado, como também de muita felicidade pessoal.
Mesmo vendendo pouco, ela era um dos melhores cachês de shows e, no fim das contas, a pobre menina de 1963 estava rica, mas, sempre perseguida pela maledicência, era acusada de avarenta, num mundo de inveja onde quem não é acusado disso tem fama do pródigo, pois nada há de mais anormal do que se ver num artista alguém normal, ou, pelo menos, alguém muito parecido com as demais pessoas.
Sua normalidade, tão pouco explorada, não se extingue na repetição do talento, mas vai a alguns pontos até mesmo raros. Nada tinha de falsa vaidade das estrelas. Recusou uma sugestão para que seu carro tivesse chofer, vestia-se conservadoramente e, na hora de construir uma casa na serra, da Cantareira, passou numa empresa de pré-fabricados, mandou embrulhar uma e nela viveu feliz muitos anos. Jamais fez concessões ao escândalo ou ao gênero heroína do fotonovela. Todos os seus romances tiveram endereço e, se dependesse dela, a imprensa jamais os alcançaria.
Sempre manteve os filhos fora da linha de tiro dos espetáculos. Agora, deverá se esclarecer com quem ficam João Marcelo, filho do Ronaldo Bôscoli, a quem ela proibia que visitasse a criança, de 11 anos, Pedro, de 6, e Maria Rita, de 4, ambos vindos de seu casamento com César Camargo Mariano. Se a sua vontade de que os três nunca se separem puder ser cumprida, ficarão todos com seu irmão Rodrigo ou com os avós, que vivem em São Paulo, trazidos e mantidos por ela desde que o sucesso tirou-a definitivamente de Porto Alegre.
Afinal, ninguém acreditava nessa pessoa audaciosa quando ela dizia que "morro do medo, faço todos os espetáculos me borrando do medo, todos os dias. Faço, mas com medo. E se mandar parar, eu paro, porque medo eu tenho".
"Eu não tenho a menor intenção de ser simpática a algumas pessoas. Me furtam o direito inclusive de escolher. Sou obrigada a aceitar quem passar pela frente. Me tomam por quem? Um imbecil? Sou algo que se molda do jeitinho que se quer? Isso é o que todos queriam, na realidade. Mas não vão conseguir, porque quando descobrirem que estou verde já estarei amarela. Eu sou do contra. Sou a Elis Regina do Carvalho Costa que poucas pessoas vão morrer conhecendo.”
Elis Regina
(Veja, janeiro de 1982)


Última apresentação de Elis Regina

Além de seu extenso repertório, de seu talento e emoção, Elis nos deixou João Marcelo, Pedro e Maria Rita.


Um comentário:

  1. Bom demais! Fico a pensar porque todo o inteligente é assim: "com-pli-ca-do'... Mas de uma complicação apaixonante e odiosa. Vai entender tal antagonismo! Nem Freud!

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