O piá era filho da Dona Lena. Levava e trazia rotineiramente
as trouxas de roupas que a mãe lavava pra fora, precocemente ajudando como podia
em casa. Trazia as pesadas trouxas de roupas sujas dos ricos, depois levava
tudo de novo, roupa limpinha, fervida em água de bica (o chafariz do Bairro
Velho), sabão de cinzas e anil, passada com os vincos certinhos, e que
entregava direitinho, trazendo os minguados tostões pra suprir a familia grande
e pobre, da carente periferia sociedade anônima de Itararé, pois o pai estava
doente, os irmãos menores padecendo, por meses, mal-e-mal e sempre uma
rotineira e rala sopa de fubá com couve rasgada. Havia carestia no Brasil, anos
sessenta, os clientes ricos minguando, o já parco pagamento dos afazeres da mãe
dedicada, entre o tanque e o quarador, entre o fogão de lenha e os filhos com
amarelão. A Dona Lena confiava naquele primogênito, era o maior, dizia até que
o bendito era abençoado por Deus. Gastava um minuto de prece com os outros filhos, nas demoradas
orações, mas, com aquele seu protegido era meia hora, precisava investir no
menino, tinha fé nele.
Algo doente, Dona Lena, mesmo assim batalhou até de madrugada,
fervendo as roupas no latão velho de óleo de algodão, sobre uma lajota com fogo
no quintal de laranjeira pesteada. Depois, passou a ferro que era de brasas,
com sacrifício, mas ela contava com mais aquele serviço, tinha planejado,
ternura de mãe. A despensa estava vazia fazia tempo. Sopa de fubá com couve
rasgada, polenta maleixa, aqui e ali, banana frita, uns ovos que mal davam prum
bolo mixuruca de banana-caturra e olhe lá. O céu por testemunha. Se o Dr
Aderaldo mandasse mais uma quantia de roupa, se apressaria em entregar
depressinha o serviço, pra ter mais uns cobres que melhorassem a bóia de natal,
talvez desse até para comprar algumas tubainas de limão do Vilela, ou mesmo
algum doce de cidra pros filhos queridos, tão precisados. Instruiu o piá Thiago
que, entregando as trouxas de roupas limpas, recebesse e passasse no Seu
Vitorino, fizesse algumas compras, deu uma listinha, feijão-jalo, tomate, óleo,
açúcar cristal. E também
trouxesse a nova renca de roupas sujas pra ela poder adiantar bem o serviço,
varando a noite preciso fosse, talvez entregando no dia seguinte, mesmo tendo
que ferver as roupas de madrugada, mas, ao final do dia de natal entregaria
tudo pronto e receberia a paga costumeira para melhorar a bóia em casa. Coração
de mãe. Capricharia nos torresmos, cuques, tortas de lágrimas. Confiava no
guri. Bem instruído, ele foi levar as
pesadas trouxas, como se carregasse o mundão sem porteiras sobre os ombros
miúdos.
Entregou, recebeu, viu que era pouco o que pagavam pelo
trabalho, mas atenderia à solicitação da querida Mãe. Mas, quando perguntou da
nova porção de roupa suja da casa do Dr Aderaldo, foi informado de que não
estavam mais interessados no serviço, contratariam empregada barata a preço
melhor e que ainda faria tudo, depois, estavam para entrar de férias, iriam pra
Iguape, litoral. O menino ficou estacado. Mal deram um tiau seco e sem graça
que fosse, fecharam a porta da casa rica na cara azeda dele, e Thiago ficou
ali, encostado na enorme porta de cedro e imbuia cheirosa, chorando suas
lágrimas, quase beijando a parede, quase mesmo batendo de novo e pedindo pelo
amor de Deus, mais uma leva de roupa suja, mais uma porção de serviço, a casa
precisava, a mãe contava com aquilo, que fizessem uma caridade. Era Natal e ele
estava detravessado. Sensível. Cismou. Reinou. Não voltaria pra casa. Não
voltaria nunca mais. Não com as mãos vazias. Não ele. Não daquele jeito.
Ficaria ali. Estava mesmo com tosse de cachorro, a mãe
disse, o peito chiara na madrugada fria do dia anterior, um dezembro chuvoso e
friorento em Itararé. Se morresse ali, não daria desgosto de dizer pra mãe que
não teria mais roupa pra lavar daquela ultima casa freguesa, ou que iria
apertar mais a pobreza em sua casa humilde. Sim, ficaria ali, achariam o corpo,
dariam o dinheiro pra mãe, ela o abençoaria, "vá com Deus meu curumim, vá
morar no céu, piá". Ele não tinha coragem. A mãe pedira. A mãe contava com
mais uma lavada pelo menos, naqueles tempos de carestia. Pelo menos morrendo,
no jantar daquela noite sobraria mais da rala sopa de fubá com couve rasgada
pros irmãos, para as adoradas irmãs, para a mãe adorável que andava dodói da
angina, pro pai que estava de cama com úlcera varicosa e assim era impedido de
trabalhar. Ali Thiago ficou entrevado, coração transido, alma aflita, mordido
de dor. Só por Deus. Entardeceu, anoiteceu. Sobre a beirada da porta da frente
da mansão do Dr Aderaldo Martins Mello, na Rua 24 de Outubro, um pacote de
renúncias. Foi quando o policial Dito Lima o achou sem querer e salvou a sua
vida, pois a morte já fora avisada que uma alma pura de Itararé estava para ser
levada para muito além do vale da sombra da morte...
Na Santa Casa de Misericórdia de Itararé foi uma correria
danada, um forfé sem igual, o menino coitadinho para morrer; cobraram doações
de sangue, labutaram, uma enfermeira conhecia a familia, foram avisar Dona
Lena, o filho achado em petição de desconsolo estava morrendo em frente a casa
do doutor rico, a mãe preocupada pensava mesmo em chamar a policia, ia dar
parte na cadeia, perguntaram então do porque o menino que entregava roupa não
quisera mais voltar pra casa, como ele ainda em tratamento emergencial, talvez
entre o pesadelo e o sonho, falara, repetira, suando, descorçoado, determinado,
em febre-terçã, preferindo morrer do que não ter como ajudar a mãe prover o
lar.
O Dr. Jonas de Alencar chorou muito depois que o pensou com
presteza, mandou trazerem capado do sitio e que doassem pra família junto com
farnel de milho verde e manta de charque, entre grãos e tulhas de frutas como
laranja-pêra, abacate-manteiga, manga-sapatinho, alguns lambaris salgados
também. O enfermeiro Nicanor correu no Armazém do Vereador Tico comprar fiado
uma boa cesta básica pra doar como se fosse o seu abençoado presente de natal
pra família. Todos no hospital, doadores, serviçais, visitantes, curiosos,
gente de coração de ouro de Itararé, cavalheiros como os reis magos, foram
acudir aquela família humilde em petição de miséria. Muito além de ouro,
incenso e mirra, há o amor, pois o amor é a mão que balança o berço da
humanidade, e a esperança é a inteligência da vida.
Nunca tiveram um mês tão farto naquela casa de tabuinhas,
com todos finalmente comendo do bom e do melhor, até que a mãe arrumou
freguesia nove e farta, o pai arrumou emprego de acendedor de lampiões de gás
de Itararé, o menino Thiago ficou sendo respeitado pelos seus colegas do
primário no Grupo Escolar Tomé Teixeira, e quando algum piá maroteiro de rua,
com quem joga bola de capotão agora, de ki-chute encardido no pé, pergunta
porque ele não quis voltar pra casa, ele enche os olhos de lágrimas, abaixa a
cabeça, se assunta e não diz nada. Fica encruado.
Não, não se apruma numa conversa fiada que seja. Sabe só pra
ele que dentro do seu coração, de alguma maneira que inventou de inventar, sentiu uma estrela amarela de Natal
alumiando, e ele queria aquela bendita luz, aquele dourado celeste de
esperança, para enfeitar a choupana humilde de sua morada na descalça periferia
cor-de-rosa de Itararé.
Sentiu que, talvez porque fosse Natal, mesmo morrendo de
frio, de alguma maneira seus familiares não morreriam de fome, pois, algum anjo
de pertinho do Menino Jesus do presépio, em sua fé e defesa, operaria o que o
pastor João Vera da igreja chamaria de um "Milagre".
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