Do alto de suas sandálias plataforma dez, remelexia 1m75 de
feminilidade artificial, embalado por uma versão techno-samba de Noite feliz.
Monique executava apressadamente os últimos passos da coreografia, tanto que
por pouco não pisoteou o vestido em lamê prateado de Dóris Dei, estrela maior
do espetáculo de fim de ano do Teatro Brigitte Blair. O pensamento de Monique
já não estava ali, no mundo notívago da Lapa, mas em Seropédica, onde voltaria
a protagonizar, durante os próximos dias, a vida como o filho pródigo
Monclarson, junto com sua mãe, quatro irmãs e inúmeros sobrinhos. O irmão mais
velho já havia avisado que não iria, o que não chegava a ser novidade.
Momentos depois, olhos fechados para limpar a sombra
dourada, Monique foi surpreendida por uma estranha comoção no camarim,
acompanhada de um sussurro estridente de Natacha:
- Mona, aquele não é o Antônio Marcel?
- Mona é a mãe gentil! Monique, tá! Quem, o Antônio Marcel
da novela?!?
Voltando os olhos úmidos para a porta, ela vislumbrou quatro
ou cinco figuras exóticas, tudo Zona Sul, rodeando o galã global da hora. Uma
onda de excitação ia tomando conta do camarim, quando uma mulher muito branca
de vestidinho preto destacou-se do grupo e anunciou imperiosa:
- Meu nome é Adriana Venâncio. Sou videomaker. E este é o
Peruca, artista plástico.
Assim dizendo, indicou com o braço esticado um sujeitinho
esquisito, de cabeça raspada, pesados óculos de armação preta e camisa pólo
surrada.
- Estamos realizando uma videoinstalação intitulada Feitiço
da Lapa e viemos aqui selecionar figurantes. Vocês sabem o que é isto?
O tal do Peruca adendou, com ar blasé:
- É uma espécie de videoclipe, sem música.
Agradecida e irritada a um só tempo, Adriana retomou a
palavra:
- É, é tipo um clipe. E o nosso gatíssimo Antônio Marcel,
que está aqui, é quem vai estrelar. Precisamos de três travestis para
contracenarem com ele.
A esta notícia, todas se ouriçaram. Foi Dóris, experiente,
quem perguntou:
- Tem cachê?
- Não.
Monique ainda arriscou:
- Mas, vai passar na tevê?
- Talvez. Quem sabe?
Algumas das meninas mais novas toparam, dentre elas Monique.
- Ah, não tem dinheiro, mas vale a pena, só para ficar perto
do Antônio Marcel! Ele é lindo!
Partiram em dois táxis diretamente para um motel na Joaquim
Silva, onde havia sido alugado um quarto para as filmagens.
* * *
Encontraram a equipe tomando cerveja num botequim defronte
ao hotel. Segundo Batista, o cinegrafista, os equipamentos já estavam todos
montados.
- Também não tinha muito o que fazer, com essas luzes
fuleiras que vocês me arrumaram!
Adriana fez que não ouviu e, puxando Peruca pelo braço,
adentrou o saguão acanhado do hotel. Passaram direto pelo velho porteiro, o
qual vigiava sonolento o movimento fraco daquela noite de domingo, e subiram
para o primeiro andar.
Batista rodou a chave na fechadura antiga, que já não
oferecia mais a menor resistência aos dentes gastos do metal. Do interior do
quarto, veio o som de vozes sussurrando, seguido de um estrondo imediatamente
reconhecível para o câmera como a queda de seu tripé alemão. Batista abriu com
ímpeto a velha porta e despencou-se para dentro do quarto escuro. Ao fazê-lo,
tropeçou num vulto ligeiro e forte que perfazia o mesmo caminho em mão inversa.
O garoto irrompeu no corredor e, com todo o impulso de seus dezesseis anos
duramente sobrevividos, lançou-se escada abaixo, atropelando artistas, técnicos
e travestis sem distinção de classe, gênero ou opção sexual. Antes que os
intrusos se refizessem do choque, seguiu pelo mesmo caminho outro menino menor,
este embalando a câmera enrolada numa camiseta. Batista agarrou-se à ponta
solta do pano, obrigando o menino a soltar o valioso equipamento em cima da
barriga mole do Peruca, caído. Ninguém mais tentou barrar sua fuga.
Terminada a ruidosa confusão, a comitiva foi ingressando aos
poucos no quarto para conferir os estragos. Ao acenderem a luz,
surpreendeu-lhes a visão de uma menina de cerca de treze anos, suja e
maltrapilha, agachada no chão, muito grávida. A expressão que cobria-lhe o
rosto refletia um misto de pavor e dor, prontamente explicado pela poça que se
alargava em torno de seus pés descalços. Perplexa, Adriana indagou a Batista:
- Essa pivetinha está mijando no meu chão?
- Não, Adriana, ela está dando à luz. É a bolsa d'água que
estourou.
Batista ensaiou aproximar-se da menina mas se deteve ao
vê-la agarrar uma chave de fenda próxima e empunhá-la como uma faca, num gesto
de desafio. Seu corpo permanecia tenso, apesar do sofrimento evidente.
Subitamente, ao olhar para a porta, o semblante dela mudou. Arregalando os
olhos cheios de lágrimas, ensaiou um esboço patético de sorriso, enquanto ia
baixando a chave de fenda. Todos seguiram seu olhar embasbacado em direção à
porta e testemunharam o momento em que Antônio Marcel adentrou o quarto,
cercado pelos três travestis plenamente embonecados.
Enfurecida, Adriana voltou-se para o cameraman e rosnou:
- Puta que pariu, Batista. Tira essa porra dessa menina
daqui!
A troca momentânea de ódio entre os dois foi interrompida
pela voz de Peruca, estranhamente excitada:
- Não, Adriana, não! A gente tem que filmar isto! Uma menina
parindo, um galã da Globo do lado e três travestis da Lapa. Vai ser a nossa
Natividade fashion!!!
A cólera foi-se esvaindo dos olhos de Adriana, substituída
por um brilho perverso.
- Filma, Batista, filma! Se é que você quer receber a sua
parte, bota essa merda dessa câmera para rodar agora! (Rafael Cardoso)
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