terça-feira, dezembro 18

* Auto de Natal da Lapa




Do alto de suas sandálias plataforma dez, remelexia 1m75 de feminilidade artificial, embalado por uma versão techno-samba de Noite feliz. Monique executava apressadamente os últimos passos da coreografia, tanto que por pouco não pisoteou o vestido em lamê prateado de Dóris Dei, estrela maior do espetáculo de fim de ano do Teatro Brigitte Blair. O pensamento de Monique já não estava ali, no mundo notívago da Lapa, mas em Seropédica, onde voltaria a protagonizar, durante os próximos dias, a vida como o filho pródigo Monclarson, junto com sua mãe, quatro irmãs e inúmeros sobrinhos. O irmão mais velho já havia avisado que não iria, o que não chegava a ser novidade. 
Momentos depois, olhos fechados para limpar a sombra dourada, Monique foi surpreendida por uma estranha comoção no camarim, acompanhada de um sussurro estridente de Natacha: 
- Mona, aquele não é o Antônio Marcel? 
- Mona é a mãe gentil! Monique, tá! Quem, o Antônio Marcel da novela?!? 
Voltando os olhos úmidos para a porta, ela vislumbrou quatro ou cinco figuras exóticas, tudo Zona Sul, rodeando o galã global da hora. Uma onda de excitação ia tomando conta do camarim, quando uma mulher muito branca de vestidinho preto destacou-se do grupo e anunciou imperiosa: 
- Meu nome é Adriana Venâncio. Sou videomaker. E este é o Peruca, artista plástico. 
Assim dizendo, indicou com o braço esticado um sujeitinho esquisito, de cabeça raspada, pesados óculos de armação preta e camisa pólo surrada. 
- Estamos realizando uma videoinstalação intitulada Feitiço da Lapa e viemos aqui selecionar figurantes. Vocês sabem o que é isto? 
O tal do Peruca adendou, com ar blasé: 
- É uma espécie de videoclipe, sem música.
Agradecida e irritada a um só tempo, Adriana retomou a palavra: 
- É, é tipo um clipe. E o nosso gatíssimo Antônio Marcel, que está aqui, é quem vai estrelar. Precisamos de três travestis para contracenarem com ele. 
A esta notícia, todas se ouriçaram. Foi Dóris, experiente, quem perguntou: 
- Tem cachê? 
- Não. 
Monique ainda arriscou: 
- Mas, vai passar na tevê? 
- Talvez. Quem sabe? 
Algumas das meninas mais novas toparam, dentre elas Monique.
- Ah, não tem dinheiro, mas vale a pena, só para ficar perto do Antônio Marcel! Ele é lindo! 
Partiram em dois táxis diretamente para um motel na Joaquim Silva, onde havia sido alugado um quarto para as filmagens. 

* * *  

Encontraram a equipe tomando cerveja num botequim defronte ao hotel. Segundo Batista, o cinegrafista, os equipamentos já estavam todos montados. 
- Também não tinha muito o que fazer, com essas luzes fuleiras que vocês me arrumaram! 
Adriana fez que não ouviu e, puxando Peruca pelo braço, adentrou o saguão acanhado do hotel. Passaram direto pelo velho porteiro, o qual vigiava sonolento o movimento fraco daquela noite de domingo, e subiram para o primeiro andar. 
Batista rodou a chave na fechadura antiga, que já não oferecia mais a menor resistência aos dentes gastos do metal. Do interior do quarto, veio o som de vozes sussurrando, seguido de um estrondo imediatamente reconhecível para o câmera como a queda de seu tripé alemão. Batista abriu com ímpeto a velha porta e despencou-se para dentro do quarto escuro. Ao fazê-lo, tropeçou num vulto ligeiro e forte que perfazia o mesmo caminho em mão inversa. O garoto irrompeu no corredor e, com todo o impulso de seus dezesseis anos duramente sobrevividos, lançou-se escada abaixo, atropelando artistas, técnicos e travestis sem distinção de classe, gênero ou opção sexual. Antes que os intrusos se refizessem do choque, seguiu pelo mesmo caminho outro menino menor, este embalando a câmera enrolada numa camiseta. Batista agarrou-se à ponta solta do pano, obrigando o menino a soltar o valioso equipamento em cima da barriga mole do Peruca, caído. Ninguém mais tentou barrar sua fuga. 
Terminada a ruidosa confusão, a comitiva foi ingressando aos poucos no quarto para conferir os estragos. Ao acenderem a luz, surpreendeu-lhes a visão de uma menina de cerca de treze anos, suja e maltrapilha, agachada no chão, muito grávida. A expressão que cobria-lhe o rosto refletia um misto de pavor e dor, prontamente explicado pela poça que se alargava em torno de seus pés descalços. Perplexa, Adriana indagou a Batista: 
- Essa pivetinha está mijando no meu chão? 
- Não, Adriana, ela está dando à luz. É a bolsa d'água que estourou. 
Batista ensaiou aproximar-se da menina mas se deteve ao vê-la agarrar uma chave de fenda próxima e empunhá-la como uma faca, num gesto de desafio. Seu corpo permanecia tenso, apesar do sofrimento evidente. Subitamente, ao olhar para a porta, o semblante dela mudou. Arregalando os olhos cheios de lágrimas, ensaiou um esboço patético de sorriso, enquanto ia baixando a chave de fenda. Todos seguiram seu olhar embasbacado em direção à porta e testemunharam o momento em que Antônio Marcel adentrou o quarto, cercado pelos três travestis plenamente embonecados. 
Enfurecida, Adriana voltou-se para o cameraman e rosnou: 
- Puta que pariu, Batista. Tira essa porra dessa menina daqui! 
A troca momentânea de ódio entre os dois foi interrompida pela voz de Peruca, estranhamente excitada: 
- Não, Adriana, não! A gente tem que filmar isto! Uma menina parindo, um galã da Globo do lado e três travestis da Lapa. Vai ser a nossa Natividade fashion!!! 
A cólera foi-se esvaindo dos olhos de Adriana, substituída por um brilho perverso. 
- Filma, Batista, filma! Se é que você quer receber a sua parte, bota essa merda dessa câmera para rodar agora! (Rafael Cardoso)



 

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