Livro sobre desaparecida política revela ao mundo Brasil
'desconhecido'
Mônica Vasconcelos - BBC Brasil em Londres (7/6/13)
Um livro que narra a busca de um pai por sua filha desaparecida política durante a ditadura militar no Brasil está surpreendendo editores estrangeiros ao revelar um capítulo pouco conhecido da História brasileira – ao menos no exterior.
Publicado no Brasil em 2011, o livro K, do escritor e
cientista político paulistano Bernardo Kucinski, já ganhou traduções em inglês,
espanhol e catalão, e será publicado também em alemão e hebraico.
Obra de ficção, o livro é baseado nas histórias reais do pai
do autor, Majer Kucinski – o personagem K -, um judeu polonês que fugiu do
nazismo e foi viver no Brasil, e da irmã do escritor, Ana Rosa Kucinski Silva.
Militante política e professora de química da Universidade
de São Paulo (USP), Ana Rosa foi sequestrada e morta por agentes a serviço do
governo militar. Seu corpo jamais foi encontrado.
O ex-delegado do Dops Cláudio Guerra confirmou, em
entrevista ao jornalista Alberto Dines, exibida em 2012 pelo programa de TV
Observatório da Imprensa, que recebeu o corpo de Ana Rosa, que teria sido morta
em sessão de tortura, para ser incinerado.
Em entrevistas à BBC Brasil, intelectuais e pessoas
envolvidas na publicação de K no exterior disseram que o livro chama a atenção
ao revelar para o mundo, em um relato comovente e envolvente, o drama humano
por trás da realidade violenta da ditadura militar no Brasil.
Em um momento em que a Comissão da Verdade se esforça para
recuperar a história desse período, o lançamento internacional também
contribuiria para aumentar a pressão externa sobre o governo brasileiro para
que tome providências e puna os culpados, disseram.
A versão alemã de K será lançada pela editora
berlinense Transit durante a Feira do Livro de Frankfurt, que neste ano estará
homenageando o Brasil.
Segundo o editor, Reiner Nitsche, o foco em temas
brasileiros fez com que ele recebesse muitas ofertas de obras do país para
publicação. Mas nenhuma chamou tanto sua atenção como K.
"Nunca associamos histórias de sequestros e desaparecimentos
ao Brasil. Pensávamos que essas coisas só tinham acontecido na Argentina e no
Chile".
"Outro ponto importante é a conexão com a história
alemã. K nasceu na Polônia na década de 30 e era ativo politicamente,
combatendo o antissemitismo. Por isso, foi preso e mais tarde teve de fugir
para o Brasil. Anos depois, sua irmã foi morta pelos nazistas."
Para Nitsche, no entanto, a principal justificativa para a
decisão de publicar a obra na Alemanha é a forma como o livro aborda a temática
política.
Em K, a comovente busca do personagem central por sua filha
é narrada de vários pontos de vista. O leitor habita a mente do pai
desesperado, do informante, da amante do torturador, da faxineira que limpa a
casa onde os prisioneiros são torturados e mortos, dos ex-colegas da
desaparecida na universidade e dos militantes clandestinos que lutam contra a
ditadura, entre outros.
"O tipo de verdade que você tem nessa história política
é muito raro de encontrar".
"Isso é muito novo e interessante para nós, porque você
percebe que a ditadura é cruel mas os militantes também podem ser cruéis, seus
métodos são similares".
Nitsche faz referência a um capítulo em que um militante
político critica seu próprio líder por não ter permitido que os integrantes do
grupo questionassem suas ações.
"O que os militantes estavam fazendo era suicida e
alguns perceberam isso, mas não tiveram permissão de questionar ou de abandonar
a luta", disse.
"Se você quiser mudar a cabeça das pessoas, tem de
publicar livros como esse, não histórias de bonzinhos e malvados",
acrescentou o editor. "O livro mostra a crueldade terrível da ditadura
militar. Mas no decorrer da história, K se dá conta de quantas pessoas estão
colaborando com a ditadura. O padeiro, a imprensa, a comunidade judaica em São
Paulo".
Nitsche disse que já recebeu comentários positivos da
imprensa alemã sobre K e espera que o livro cause algum impacto no período do
lançamento, no final de agosto.
Instrumento PolíticoA visão cheia de nuances que o livro de
Kucinski oferece também mereceu elogios de uma especialista em Justiça de
Transição da Oxford University, a professora Leigh Payne.
Comentando o lançamento, em março último, da tradução
inglesa na Grã-Bretanha, a especialista disse ter gostado muito da conexão
entre a vida do pai, seu passado de luta contra a opressão, e a vida secreta da
filha.
"Ele não sabia que a filha estava levando adiante a
luta dele".
"K é muito bom ao tentar mostrar que as vítimas da
violência não eram necessariamente inocentes, mas também não eram uma
ameaça".
Para Payne, não há dúvida de que os militantes brasileiros
não iam conseguir derrubar o regime. "Ainda assim, lutavam por igualdade e
democracia e tinham uma visão patriótica do que o Brasil deveria ser".
Segundo a especialista, um resultado positivo do lançamento
internacional do livro é que ele pode funcionar como um instrumento de pressão
por mudanças.
"A violência durante o governo militar no Brasil
recebeu muito menos atenção internacional do que a ocorrida na Argentina ou no Chile
e essa falta de interesse persiste hoje".
A publicação de K fora do Brasil "é importante porque
aumenta a consciência, no exterior, das violações aos direitos humanos
ocorridas no Brasil durante a ditadura militar e faz crescer a pressão sobre o
governo brasileiro para que faça algo a respeito".
Payne lembrou que o governo brasileiro ainda não acatou a
sentença, pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, em 2010, exigindo que
o Brasil investigue e puna os responsáveis pelas mortes de militantes no
Araguaia.
O contato com a editora foi intermediado pelo historiador
israelense Avraham Milgram, que vive em Israel e conheceu o pai de Bernardo
Kucinski.
"Uma das razões do sucesso desse livro é que pessoas de
diversas culturas, países e regimes se identificam com o drama desse pai, é um
tema universal".
Mas K tem para os judeus uma dimensão que talvez escape ao
público europeu e brasileiro, explicou.
O pai da desaparecida, Majer Kucinski, escritor e poeta com
livros publicados no Brasil e em Israel, era um típico judeu da Europa
Oriental, onde floresceu a cultura iídiche. A maioria dos judeus mortos pelos
nazistas pertencia a essa cultura.
"Em sua devoção a essa cultura perdida, que existiu
durante 800 anos na Polônia e foi erradicada, Majer se alienou dos
filhos", disse o historiador. "Isso talvez tenha facilitado a escolha
de Ana Rosa pelo caminho que seguiu".
Cientistas políticos no Brasil se perguntam as razões do
desinteresse dos brasileiros em relação à história da ditadura militar no país.
"K quase que chegou cedo demais", disse Leigh
Payne. Depois de anos estudando as políticas dos direitos humanos no Brasil e
América Latina, ela acha que, para comover o público brasileiro, um livro como
esse tem de vir junto com outras coisas:
Um trabalho sério e aprofundado da Comissão da Verdade, o
resgate da imagem "negativa" das vítimas, mudanças no conceito de
direitos humanos na sociedade brasileira e, quem sabe, algum sucesso nas
tentativas de julgar os responsáveis pelos crimes.
Depois disso, "talvez, se alguém fizer um filme sobre o
livro, com atores famosos nos papéis principais, os brasileiros irão ao cinema
assisti-lo - e aí vão se comover e gostar muito", concluiu a professora da
Oxford University.
Bernardo Kucinski trabalhou na BBC Brasil (antigo Serviço Brasileiro da BBC) entre 1970 e 1974, período em que viveu em Londres.
Bernardo Kucinski trabalhou na BBC Brasil (antigo Serviço Brasileiro da BBC) entre 1970 e 1974, período em que viveu em Londres.
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