domingo, março 30

* 1964 - A felicidade e o otimismo brasileiros incomodavam.... quem?

 




Muito prazer, esse é o país que antecedeu o golpe militar de 1964!
 

Nunca fomos tão felizes. Então veio o golpe

Paraíso não era, nunca foi, mas raras outras vezes tivemos a impressão de que o céu podia ser aqui

Sérgio Augusto - O Estado de S.Paulo

Paraíso não era, nunca foi, mas raras outras vezes tivemos a impressão de que o céu podia ser aqui mesmo como entre a segunda metade da década de 1950 e os primeiros anos da década seguinte. Democracia plena, otimismo econômico, industrialização acelerada, um presidente (JK) sonhador, sorridente e dinâmico, com a autoestima turbinada por duas Copas do Mundo, pelo reinado de Eder Jofre nos ringues internacionais e Maria Esther Bueno nas quadras de Wimbledon, o Brasil se descobriu contemporâneo, progressista e culturalmente relevante.
JK na inauguração de Brasília

Relevante e influente. Graças, sobretudo, à bossa nova, nosso maior produto de exportação depois do café, do futebol e de Carmen Miranda. Oficialmente apresentada aos americanos num histórico concerto no Carnegie Hall, em novembro de 1962, a bossa nova precisou de muito pouco tempo para conquistar os gringos e polinizar a música popular do mundo inteiro. Só entre 1961 e 1963, Samba de Uma Nota, de Tom & Newton Mendonça, foi gravada por 15 músicos americanos e europeus.
Teatro de Arena da UFRJ

Local que respira história e cultura. Aquele que, na época em que o palácio era um hospício, servia para vigiar os doentes, também foi um marco da música popular brasileira. No final da década de 50, o Teatro de Arena foi o palco que lançou o mais importante movimento de música cosmopolita do Brasil, a Bossa Nova, durante o lançamento do disco de João Gilberto, “Chega de Saudade”, onde estiveram presentes Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Nara Leão que fariam outro show no local no ano seguinte
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Vivíamos uma renascença musical, não por obra exclusiva da bossa nova e da "redescoberta" do samba do morro (primeiro no Zicartola e na Estudantina, mais tarde no show Opinião), mas também porque o protofunk de Jorge Benjor (então Ben, simplesmente) aos poucos enxotava das pistas de dança o twist e o hully gully. A Jovem Guarda ainda era pouco mais que um brilho nos olhos de Roberto Carlos quando as refinadas harmonias de Moacyr Santos, o nosso Duke Ellington, ganharam um LP (Coisas) com o selo de uma nova gravadora independente, Forma, tão exigente e elegante quanto a Elenco, que Aloisio de Oliveira, ex-parceiro de Carmen Miranda e Tom Jobim , criara para eternizar em disco o melhor da moderna música popular brasileira.

Além de ser a responsável pela popularização de Saint Tropez, na França, ao se mudar para lá no começo dos anos 1960, no verão de 1964 Brigitte Bardot também mudou a vida de uma pequena cidade do litoral do Rio de Janeiro chamada Armação dos Búzios, então distrito de Cabo Frio, onde ficou hospedada em suas visitas pelo Brasil, na companhia do namorado Bob Zaguri, um playboy e produtor marroquino que viveu muitos anos no Brasil. Depois da visita de BB, acompanhada diariamente pela imprensa e recheada de fotografias, Búzios foi 'descoberta', virou município e tornou-se um dos pontos mais sofisticados e procurados do verão brasileiro, inclusive por estrangeiros.

Elenco e Forma surgiram em 1963, ano especialmente marcante para a cultura do País. Líamos mais e melhor naquela época, tínhamos uma das mais sofisticadas revistas do mundo, a Senhor, que quatro anos antes chegara às bancas prometendo em editorial o que nunca deixaria de cumprir: publicar artigos, ensaios, cartuns, reportagens, entrevistas e fotos para os "elementos mais responsáveis da vida nacional, a fim de estimulá-los a considerar com mais seriedade os problemas culturais do País.
Maria Esther Bueno (tênis) – 71 títulos, entre eles: torneios individuais de Wimbledon, na Inglaterra, em 1959, 1960 e 1964, e os de duplas em 1958 (com Althea Gibson), 1960 (com Darlene Hard), 1963 (Hard), 1965 (com Billie Jean King) e 1966 (com Nancy Richey).
Ganhou ainda os torneios individuais do Aberto da Itália em 1958, 1961 e 1965. Em 1960, jogando em dupla, triunfou nos torneios de Aberto da Austrália, dos Estados Unidos, Roland-Garros (França) e Wimbledon - e assim conquistou o Grand Slam daquele ano.  

Desenhada por Carlos Scliar e Glauco Rodrigues, com textos da fina flor da intelectualidade (de Clarice Lispector a Paulo Francis, Ferreira Gullar, Ivan Lessa, José Guilherme Merquior, Luís Lobo) e cartuns de Jaguar, Senhor era a nossa Esquire, a The New Yorker carioca, o complemento mensal perfeito para o banquete de inteligência e erudição que nos serviam os sabáticos suplementos literários do Jornal do Brasil (SDJB), do Estado e da Tribuna da Imprensa.

Poesia. Não havia livros de autoajuda nem autores repetidos nas listas dos mais vendidos. Herbert Marcuse e Marshall McLuhan faziam a cabeça da massa pensante e nossos poetas de ponta (Drummond, Bandeira, João Cabral) ainda estavam vivos e ativos, assim como a arte da crônica e da narrativa curta, honradas naquele ano por Sérgio Porto (A Casa Demolida), Carlos Heitor Cony (Da Arte de Falar Mal), Dalton Trevisan (Cemitério de Elefantes) e pelo estreante Rubem Fonseca, cuja coletânea de contos, Os Prisioneiros, lançada por uma pequena editora, deixou a crítica extasiada.

Pelé, Garrincha... O Brasil venceu a Copa do Mundo de 58 e 62. 

Com a recém-fundada Escola Superior de Desenho Industrial formando seus primeiros quadros, iniciamos a década de 1960 ainda mais convencidos de que um bom visual podia até melhorar um mau produto. A revista Senhor era um bom exemplo. E o mesmo se diga do Jornal do Brasil depois de sua reforma gráfica no final dos anos 1950, das capas minimalistas dos discos da Elenco e dos livros da Civilização Brasileira, estas concebidas por Eugenio Hirsch, e dos lançamentos da exclusiva Editora do Autor, a cargo de Glauco Rodrigues e Bea Feitler.

Com suas estrelas (Cacilda Becker, Maria Della Costa, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Ítalo Rossi) no apogeu e ainda sem a concorrência das telenovelas, o teatro nacional exibia um vigor artístico que São Paulo (TBC) e Rio (Teatro dos Sete) em breve deixariam de ver. À margem da ribalta clássica, o Centro Popular de Cultura, núcleo de esquerda da União Nacional dos Estudantes criado em 1961 para levar teatro ao povo e discutir seus problemas com as lições de Marx e Brecht, entrou em cena cheio de entusiasmo, e na primeira oportunidade, aproveitando-se da maré favorável ao cinema da terra (O Pagador de Promessas conquistara a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1962), meteu-se a produzir filmes; o primeiro, urbano, de episódios ambientados no que hoje chamam de comunidade carente (Cinco Vezes Favela), o segundo, rural, no coração dos conflitos agrários do Nordeste, inspirado num cordel de Ferreira Gullar e dirigido por Eduardo Coutinho, com o título de Cabra Marcado Para Morrer.



Capa do livro Essa Tal de Bossa Nova e plateia no Carnegie Hall, em 1962. Fotos: divulgação/Revista Cruzeiro
No dia 21 de novembro completam-se 50 anos de um dos shows mais representativos do estabelecimento da bossa nova nos Estados Unidos. Em 1962, mais de 3 mil pessoas compareceram ao Carnegie Hall, em Nova York, para assistir às apresentações de Tom Jobim, João Gilberto, Roberto Menescal, Sérgio Mendes, Carmen Costa e de inúmeros outros artistas brasileiros que encabeçavam o então novo gênero musical brasileiro Símbolo. Ainda vendendo otimismo adentramos 1964, recebendo a visita, nos primeiros dias de janeiro, de um dos mais cobiçado símbolos sexuais do cinema, Brigitte Bardot, e, duas semanas depois, da atriz e cantora espanhola Sarita "La Violetera" Montiel. Sarita veio filmar Samba, uma bobagem carnavalesca; BB veio a lazer, trazida pelo noivo, Bob Zagoury, um playboy marroquino apaixonado pelo Brasil, que a levou para uma aldeia de pescadores, na região dos Lagos, no Estado do Rio. Nascia ali a mística de Búzios, a Saint-Tropez do Atlântico Sul, onde até hoje sua musa e padroeira é reverenciada, agora em forma de estátua de bronze. BB lá se enfurnou durante quatro meses, segundo ela própria, os mais felizes de sua vida.

 
 

Deus e o Diabo na Terra do Sol– Glauber Rocha 

Ela ainda era o grande assunto mundano da praça, quando Glauber Rocha fez a primeira exibição privada de Deus e o Diabo na Terra do Sol, para um seleto grupo de amigos, na manhã de uma sexta-feira 13. E fomos todos para o vetusto cinema Vitória, perto da Cinelândia, centro do Rio, adrede escolhido porque dali os convidados de Glauber identificados com o governo Jango rumariam para o ominoso Comício da Central do Brasil, programado para o final da tarde.
 
 
Capa da revista Senhor - 1959

Estávamos a 18 dias do golpe militar. Deus e o Diabo só seria lançado em julho, depois de se consagrar em Cannes. Já Cabra Marcado Para Morrer, cujas filmagens, em Engenho da Galileia (Pernambuco), foram interrompidas pelos militares, teve de esperar pela anistia para poder ser concluído, exibido e várias vezes premiado. Apenas a ditadura estava marcada para morrer. Mas teríamos de esperar 21 anos.
 
 
 
 

terça-feira, março 25

* A Sagrada Família Brasileira



A Sagrada Família

Família virou desculpa para tudo. Tráfico de drogas, golpe, tortura, morte. Com que direito?

Nas últimas semanas, tenho me dedicado a assistir à série Breaking bad, em DVD. Vejo uma temporada após outra, hipnotizado pela história de Walter White (Bryan Cranston), um modesto professor de química que, ao descobrir um câncer, resolve produzir metanfetamina, uma droga sintética. Tudo o que quer é proteger a família. Deixar uma boa herança para pagar a hipoteca da casa, a faculdade do filho e, dali a uns 18 anos, da filha recém-nascida. Em nome da família, ele se envolve com o tráfico, mata gente. A cada temporada se afunda mais na criminalidade. Jamais perde seu discurso: tudo o que faz é pela família. Considero a série didática. Até que ponto alguém pode ir para proteger a família?
Quando se fala dessa maneira, parece uma coisa linda. Proteger a família é algo que toca nossos corações. O professor traficante é o herói da série. E a gente torce por ele, até nos momentos de maior crueldade. Depois, passada a emoção de cada episódio, reflito e vejo o que há realmente por trás da ficção. Em nome da família, é lícito produzir droga, entrar no tráfico etc.? Família virou desculpa para tudo. A última é essa bobagem de tentar ressuscitar a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, que ocorreu pouco antes do golpe militar de 1964. Na época, significou apoio ao golpe que se aproximava. Por meio do lema de “defender a liberdade”, pedia um golpe para destituir um estado de direito. Movimentos semelhantes ocorreram noutros países, que também sofreram intervenções militares. Antes da queda de Allende, no Chile, eram comuns os “panelaços”, em que donas da casa faziam estardalhaço para reclamar do governo, dizendo que faltava comida nas mesas. Depois, tanto aqui como no Chile e na Argentina, que também teve seu panelaço, vieram governos militares que deixaram mães sem filhos, mortos sem sepultura. E que falavam em... proteger a família, ai meu Deus! E torturavam e matavam. Quando eu era criança, em pleno golpe militar, garantiam que os comunistas destruiriam a família. E até que devoravam criancinhas!
No passado, se uma garota ficava grávida sem casamento, era expulsa da casa pelo pai e lançada, em geral, à prostituição. O argumento: “Defender a honra da família”. Houve, sim, uma evolução no comportamento. Ninguém expulsa uma filha de casa porque está grávida – e, se acontece, é em rincões do Nordeste. Frequentemente, é o contrário. Pais e mães atuais, novamente em nome da felicidade de seus filhos, tentam empurrá-los para bons casamentos. A família idealizada, com pais e mães bonitos, crianças saudáveis e sorridentes, é ótima para comerciais. Existe uma expressão, a “família margarina”, dos comerciais, em que se demonstra uma felicidade sem arranhões, e passar margarina no pão é a máxima expressão de afeto. Consumir é amar? É a “família margarina” que os partidários desse tipo de manifestação defendem? Uma família idealizada, que não corresponde nem às deles mesmos, com suas contradições.
Tenho motivos para gostar de Breaking bad. É comum alguém que comete um crime horrível, pessoal ou público, dizer que só quis defender a família. A série expõe essa chaga. Durante minha última novela, Amor à vida, recebi frequentes ataques pela internet, me acusando de querer destruir a família brasileira. Em última análise, a novela mostrava, sim, os vários tipos de família, da evangélica à gay. Defendia a convivência entre elas, o direito de ser, existir, e o respeito ao próximo. Essas são ideias, hoje em dia, autenticamente católicas, pois o papa Francisco demonstra um desejo sólido de tornar a Igreja mais receptiva. Mesmo que o papa diga o contrário, sempre existirão políticos dispostos a “defender a família” como argumento para qualquer retrocesso.
Nélson Rodrigues, ícone do teatro nacional, expôs as chagas das famílias. Também é intenso o livro de Zuenir Ventura, Sagrada Família, de quem roubei o título deste texto. Defender a família tornou-se desculpa para qualquer crime, frequentemente contra a liberdade e o direito. Já disse que ressuscitar essa marcha é uma grande bobagem. Ou será que estou enganado? Se já começaram a falar no tema, talvez não seja uma simples besteira. Mas um bom motivo de preocupação. Diante do que dizem, penso nos meus familiares e nas famílias de meus amigos. E pergunto: pedi alguma coisa? Com que direito alguém fala em nome de mim e de nossas famílias?
(Walcyr Carrasco / Revista Época)